Narrativas da escravidão: A história nas cartas do exílio de André Rebouças

Capa de livro registros de correspondência de André Rebouças

Crédito da fotografia: 
Acervo LABHOI
Livro “Cartas da África” reúne correspondências do intelectual negro entre 1891 e 1893 com leituras da campanha abolicionista

Um dos maiores intelectuais negros do país e grande articulador do movimento abolicionista brasileiro, o engenheiro André Rebouças registrou suas experiências e percepções em um diário que manteve quase durante toda sua vida adulta. Quando deixou o Brasil após a queda da monarquia, Rebouças passou também a transcrever as cartas que escrevia no exílio. Poucas dessas cartas haviam sido  publicadas. O livro “Cartas da África”, renova esse cenário e apresenta 193 textos transcritos da época em que Rebouças esteve exilado na Europa e na África, após a proclamação da república no Brasil, com todas as mensagens que ele transcreveu enquanto planejou e realizou sua viagem ao continente africano (1891-1893).

Editada pela historiadora Hebe Mattos, do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (LABHOI/UFF), a publicação reúne o material manuscrito pelo engenheiro enviado a amigos e instituições. Para a pesquisadora, a visão de André Rebouças, especialmente expressa em suas cartas da África, mantém uma surpreendente atualidade. Embora algumas de suas ideias possam parecer datadas, suas preocupações com o racismo, a democracia e a igualdade social permanecem tão pertinentes hoje quanto eram na época em que ele as expressava.

“O Brasil vai expiar, durante séculos, sua ferocidade escravocrata e sua leviandade; seu parasitismo e sua crápula”. — André Rebouças a José Américo dos Santos, 13 de dezembro de 1891

De acordo com Hebe Mattos, as cartas de André Rebouças abordam uma variedade de tópicos, principalmente relacionados à situação política no Brasil durante os primeiros anos da República. “Entre 1891 e 1893, o intelectual realizou uma surpreendente viagem à África. Ao escolher voluntariamente o exílio, inicialmente na Europa, com estadias em Portugal e França, seguido por residências no continente africano, incluindo países como Moçambique e África do Sul, Rebouças assumiu uma perspectiva externa do desenrolar dos eventos na República Brasileira. Nesse período, copiou a mão, em seus cadernos de correspondência, 193 cartas que teriam sido enviadas a 26 correspondentes”.

“Ora eu vim para a África, não para caçar leões, como um Lord; mas sim para combater a escravidão e o monopólio territorial. Desembarquei em Port Saïd a 2 de Abril de 1892 e logo dei o 1º combate. Claro está que não narro as vitórias por horror ao Quixotismo; mas estou contente comigo mesmo e fico em dúvida se devo morrer na África ou no Brasil.” — Carta de André Rebouças a Visconde Taunay. Cape Town, 4 de abril de 1893.

Em suas cartas, Rebouças discute o golpe militar que instaurou a República, bem como a atuação dos fazendeiros descontentes. No entanto, seu foco principal é a crítica aos primeiros anos do governo republicano, marcados por instabilidade e conflitos. “Durante essa viagem à África, ele reflete sobre o papel do Brasil na modernização do continente africano e fica cada vez mais crítico em relação à presença europeia no continente, desenvolvendo uma reflexão profunda sobre o racismo e a história africana. Entre seus correspondentes estão figuras proeminentes como o Visconde do Rio Branco, Joaquim Nabuco, e seu amigo de longa data, José Américo dos Santos”, acrescenta a historiadora.

Carta de André Rebouças escrita à mão / Créditos: Acervo LABHOI

O intelectual mantinha correspondência com amigos em Portugal e com um sobrinho. Além disso, Rebouças documenta suas interações bancárias nas cartas, revelando aspectos de sua vida financeira durante o exílio. “É importante ressaltar que essas cartas, que servem como uma forma de diário para Rebouças, foram registradas por ele, mas muitas vezes não temos respostas ou confirmações de que foram enviadas. O conteúdo dessas correspondências oferece insights valiosos sobre a visão de Rebouças sobre o Brasil e sua análise da crise política e econômica do período”, destaca a organizadora do livro.

A visão de Rebouças: democracia e igualdade social

André Rebouças foi parte da vanguarda do movimento abolicionista junto a outros ativistas negros e livres e figura de ligação do movimento social com o mundo político oficial. Liberal monarquista, notabilizou-se na defesa da abolição da escravidão sem indenização aos “proprietários” dos escravizados, do estímulo à imigração, do acesso à terra pelos recém-libertos e da democratização da propriedade fundiária. Ele mantinha uma crítica constante à elite oligárquica, a quem acusava de monopolizar a terra e escravizar seus semelhantes, além de dirigir suas críticas a militares e civis por terem, em sua interpretação, perpetrado um golpe militar.

“Naquele momento, o Brasil estava passando por um período de expectativa após a abolição, com a esperança de reformas profundas. Nesse contexto, o pensador discutia intensamente as dificuldades democráticas no país, incluindo o poder dos militares e a oligarquia agrária que resistia à democratização da terra. Essas questões continuam relevantes hoje em dia, mesmo que de maneiras diferentes. A discussão sobre golpes e intervenções militares, por exemplo, remonta à tradição republicana que Rebouças denunciava. O monopólio da terra também persiste como um problema fundamental no Brasil do século XXI”, aponta Hebe.

“Agora está bem claro que o levante de 15 novembro 1889 foi o início da expiação para o Brasil: — o maior monopolizador de terra do mundo, e, portanto, o mais satânico fator de misérias, de peste, de fome e de guerra.” — André Rebouças a José Américo dos Santos, 13 de dezembro de 1891

André Rebouças frequentemente expressava a convicção de que suas palavras ressoariam através da história, evidenciando sua compreensão de que os temas que o preocupavam seriam pertinentes por muito tempo. As cartas compiladas no livro oferecem uma visão esclarecedora da análise política do intelectual tanto no contexto brasileiro quanto africano e proporcionam uma visão do pensamento sofisticado do autor sobre questões raciais. Isso contribui para ampliar a importante discussão sobre o silêncio e o racismo institucional no Brasil.

Como bolsista do programa Cientista do Nosso Estado (CNE) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), desde 2008, a professora Hebe conta que a coleção da Chão será uma série em 5 livros, alguns com mais de um volume, englobando a totalidade dos escritos da maturidade de André Rebouças. O próximo livro, que já está com a editora e será publicado em dois volumes, conta com a transcrição do diário que o abolicionista mantinha enquanto viveu no Brasil referente ao período que compreende a primeira metade dos anos 1880 até 1885, que marca a primeira fase do movimento abolicionista. O primeiro volume foi lançado em abril, com o título “O Engenheiro Abolicionista”. Neste momento, os abolicionistas acreditavam que estavam prestes a alcançar o fim da escravidão, mas acabaram enfrentando uma derrota significativa com a aprovação da lei que libertou os sexagenários, avaliada como conservadora por manter a indenização aos senhores de escravos e frustrando as esperanças dos abolicionistas.

“Os dois volumes trazem a transcrição do diário de Rebouças durante seu retorno de Londres, um período marcado por sua atuação como engenheiro e seu envolvimento em projetos importantes, como a construção de estradas de ferro em Minas Gerais e na Paraíba. Este foi um momento de muita ação e decepção para Rebouças, pois ele acreditava firmemente na possibilidade de reformas, mas acabou enfrentando obstáculos tanto no cenário nacional quanto internacional. Este período oferece uma oportunidade interessante para refletir sobre as oportunidades perdidas no final do século XIX e as lições que podemos aprender com essas experiências de fracasso e esperança”, conclui.

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Hebe Mattos é integrante do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (LABHOI/UFF) e professora titular livre na Universidade Federal de Juiz de Fora, autora, entre outros livros, de Ao sul da história: lavradores pobres na crise do trabalho escravo, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista e Escravidão e cidadania no Brasil monárquico.

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